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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Emoção à flor da pele



Vai ter gente dizendo que faz tempo, eu sei, mas as visitas, este ano foram muitas e se concentraram no trimestre setembro-outubro-novembro. Não importa. Não importa o Tempo. O Tempo é invenção dos homens. O que importa é isso: no dia 30 de setembro (só para situar, porque parece que foi ontem, parece que foi agora mesmo), eu fiz a visita mais emocionante dos meus 30 anos de carreira e por ela agradeço principalmente à Patrícia Langlois, da 1ª CRE, que me convidou. E também agradeço à liderança da Aldeia Anhatenguá, de Porto Alegre, que permitiu a visita.
É que no último dia de setembro realizamos uma visita à aldeia, para conversar com os alunos da escola estadual instalada dentro do espaço social da Anhatenguá. E pela primeira vez na minha vida, pude olhar nos olhos dos personagens que me acompanharam ao longe de trinta anos de carreira. Eles estavam lá, nas minhas pesquisas e na descoberta pessoal de um continente muito maior do que eu imaginava; estavam lá, nas primeira linhas de A Noite da Grande Magia Branca e continuam lá, me encarando desde a História do meu país.
A Aldeia Anhatenguá é mantida por um grupo da etnia mbyá-guarani, em Porto Alegre. A visita  foi adiada algumas vezes, por conta de pequenos percalços, ligados, geralmente, à logística da vida moderna. Nada que a paciência não vença.
E até foi melhor esperar, como a vida tem me demonstrado frequentemente. O encontro aconteceu em uma tarde linda, quente, dominada por um céu azul anil, e brancas nuvens. Saímos do centro da capital, o motorista da CRE, Patrícia Langlois, Christopher Kastensmidt, Doris Dick (na qualidade de fotógrafa) e eu, e rumamos através do trânsito ruidoso, veloz e agressivo dos dias de hoje. O trajeto foi longo, marcado pela expectativa, que a gente disfarçava falando de outras coisas, sobretudo dos projetos que tínhamos por diante, com a 59ª Feira do Livro de Porto Alegre logo na virada do calendário. Por fim, depois de deixar a via rápida e entrar por uma estradinha de chão, uma curva a mais e chegamos.
Lembro da Patrícia mostrando pela janela do carro alguns dos principais pontos: a casa do cacique, construída por alunos da URGS baseados nas casas tradicionais indígenas, mais isto e mais aquilo e então chegamos à casa onde funciona a escola estadual bilíngue. E aí é que me vem a primeira sensação de ter chegado ao lugar certo: já de dentro do carro vi uma menina na janela de uma casa ao lado da escola. Era pequena e olhava pela janela da casa dela, diretamente para mim. Sorriu. Sorri de volta. Abanei. Ela abanou. Se você não esquecer como foi ser criança, você sempre saberá fazer amigos. Em todo o caso, o sorriso foi especial: foi um reconhecimento. Mas não me diga de quê, porque eu não sei, e não quero que você me diga que saiba. Guarde isso no seu coração. A menina era pequena e eu jamais a tinha visto. E abanamos uma para a outra como velhas amigas.
Na escola, ficamos um pouco no alpendre, sentados no banco, conversando com a diretora da escola. Vieram uns viralatas caçar um carinho. A menina saiu da casa, acompanhada de duas outras: uma mais ou menos do seu tamanho, e uma bem pequena, todas elas de olhos amendoados, cabelos penteados pelo vento e a pele de bronze perfeito. Foram brincar debaixo de uma árvore. Depois vieram se aprochegando. Elas não falam uma palavra em Português, eu não falo Guarani. Começamos uma espécie de diálogo de caretas e sorrisos. Tudo era de uma calma incrível, como se fosse um outro planeta. Dava para ouvir a voz do professor dentro da sala, os latidos, o piado dos pássaros, o vento nas árvores. Verdade que tínhamos saído do centro da capital há alguns minutos?
Depois o professor nos convidou para entrar. A aula estava terminando e a merendeira da escola estava preparando a comida. A turma inteira se virou e sorriu para nós, alegremente, desejando "bom dia". O coração batia depressa, depressa. Sorrimos, acenos, nos apresentamos. E tratei de aprender a dizer "bom dia" em guarani (mas agora, gente querida, mil desculpas peço: não tenho cabeça para idiomas. Esqueci como se diz. Quando eu for de novo, vocês vão ter me ensinar mais uma vez). Deve ter saído estranho, porque eles riram. Eu também.
Dali, fomos convidados a fazer uma visita na aldeia. A cunhã mirim estava me esperando do lado de fora. Nos demos as mãos. A outra cunhã também. Fomos andando pela picada no meio do campo verde sarapintado de flores simples e amarelas. Fomos ver o pessoal que trabalhava com o artesanato, preparando as esculturas que são vendidas no centro, sob o olhar de um senhor sorridente. Mas sério. Quando você vai visitar uma aldeia há muitos sorrisos sendo trocados. E muitos olhares também. Olhares que falam. Eu gosto. É intenso. É forte. A gente da cidade, às vezes, esquece da profundidade que tem um olhar verdadeiro. Nos chamaram para continuar a visita, a cunhã-mirim me puxou. Mais adiante havia uma sanga. Aprendi a dizer "água" em guarani: Yi. Ela tentou me ensinar a dizer "flor". Não fui capaz de aprender. Ali adiante fica a estufa, onde a aldeia cultiva mudas de árvores nativas. Havia uma ameixeira cheia de frutas. O cacique a plantou. Confundi os idiomas, misturei guarani e caigangue. Me corrigiram: "catu" é que é "bonito" em guarani. Bonito e bom. Na volta, ao passar pela sanga, a cunhã-mirim me contou que ali tem peixe, "pirá", e cobra, "mboi". Isso eu sabia o que era. E acho que ela não gosta das mboi. Seguimos passeio. Tivemos o privilégio de conhecer a parte mais retirada da aldeia, a reservada aos moradores. Depois voltamos. Era hora de encontrar os alunos com que fôramos conversar, os adolescentes, que já tem conhecimento maior da língua Portuguesa.
E foi aí, ao cumprimentar a turma, que me emocionei. A voz retorceu, embargada. O pessoal sumiu atrás de uma cortina de lágrimas. Eu sei que os guarani não tem problemas com lágrimas, mas eu tenho. Não deixei que caíssem. Respirei fundo mantive a voz. Falei do meu trabalho, expliquei porque tinha me emocionado tanto. E tive o prazer de deixar com eles, de presente, na esperança que algum dia tenham a paciência e a generosidade de me ler, A Noite da Grande Magia BrancaO Nalladigua e A Flauta Condor. Foi como retribuir, pelo menos um pouquinho, o muito que essa cultura me deu em forma de temas, lendas, mitos e História. Minha História, a de todos os brasileiros. Os alunos foram tímidos (como todos os adolescentes, aliás, sobretudo os que nunca me leram. Por que haveria de ser diferente?), mas ligados. Espero que você realmente não se surpreenda se eu comentar que depois de colocar o endereço do meu site no quadro negro, um dos rapazes puxou o smartphoine dele. O professor fez as honras da casa, contou um pouco da sua história para nós, escritores que inventamos vidas, como se a Vida não tivesse suas próprias histórias para contar.
Na hora de ir embora, a cunhã-mirim voltou, tão diferente que estava irreconhecível: tinha mudado de roupa, penteado os cabelos com um pente, comportada. Parecia triste, e quando embarcamos no carro, fez um muxoxo. Mas eu sei que ela estava sorrindo apenas um minuto depois que fomos embora. Tem de ser assim. A cunhazinha pequenininha nos acenou com um olhar surpreso. Acho que se perguntava de onde tínhamos vindo e para onde íamos. A outra menina se juntou às duas primeiras. Acenaram, quando o carro partiu. Foi assim.
Saí de lá flutuando, a alma lavada e renovada. Pronta para mais trinta anos de vida, e tantos mais, desde que o olhar da cunhã-mirim acompanhe minha lembrança sempre.
E apenas dois minutos depois de estar no centro de Porto Alegre, esperando o ônibus que nos levou até o trem, emersa no rugido dos carros, respirando as nuvens de fumaça e o cheiro seco e ruim do óleo diesel e dos pneus no asfalto, eu me perguntava, pela enésima vez, o que estamos fazendo com nossa vida e nosso planeta? Com o nosso Tempo, que inventamos com tanto zelo e gastamos sem pudor, tentando transformá-lo em dinheiro, como se isso fosse possível? Nosso tempo, nossa vida. Quando será "nossa felicidade"?
Por certo, antes que você me pergunte: já que gostei tanto da visita, cadê as muitas fotos que a Doris deve ter tirado? Sinto muito, foram poucas. Primeiro de tudo, porque foi a orientação que recebemos: tirar poucas fotos e, de preferência, preservando a identidade das pessoas (coisa mais natural do mundo, na verdade). E segundo porque, sinto muito, essa foi uma visita para viver e guardar no coração. Lá onde as fotos são tão ínfimas que não chegam, sequer aos pés do que foi: o cheiro, a cor, o vento, o sol, as crianças, a sensação de estar pisando leve no chão de terra batida. Ficam as palavras. Elas tem de valer mais do que mil imagens - ou eu, simplesmente, em trinta anos não aprendi o meu ofício de escritora. Abraço para vocês!

Eu e Christopher Kastensmidt no bate papo com os alunos da Anhatenguá

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